sexta-feira, outubro 24, 2008

quem por amor se perdeu



A rapariguinha chegou a casa triste, num olhar impróprio dos seus onze anos. Percorreu todo o caminho de cabeça baixa e mochila a rasar o chão, a querer esquecer aquele dia inteiro. Suplicou baixinho que ninguém a reconhecesse no caminho, nem vizinhos ou colegas, nem a senhora da merceeiria que lhe dava sempre um par de broas de canela, quando passava por ela. Só queria chegar a casa e chorar à vontade, deixar cair as lágrimas pela cara e ficar vermelha depois, e não se importar se alguém estaria a ver porque ninguém estaria a ver.

Chegou finalmente à sua porta, renovada em alumínios seguros e difíceis de empurrar. Rodou a chave de casa recém adquirida, alcançou o hall de entrada e subiu os lances até ao seu andar. Encostou o ouvido à porta e ouviu a cassete da mãe a tocar. Teria preferido que ela não tivesse em casa. Tinha que entrar de qualquer forma.

Júlia fazia o jantar na refulgente alegria da folga semanal a que tinha direito. Um jantar mimado, com o apuro da atenção e do amor. Aquele dia era um dia bom, daqueles em que se é capaz de distinguir o acessório do essencial. Dia de arroz de tomate, como deve ser. Tomate sem pele e maduro, sal no ponto, salsa a finalizar o aspecto. A última vez que tinha feito peixinhos da horta, já não se lembrava quando tinha sido. Podia ter sido há um ano, ou há seis meses, ou há muito mais tempo que isso. Surpreendia-se de ainda ser capaz de cozinhar outras coisas além de febras, arroz branco, e ovos com salsichas. Para ser mesmo o jantar perfeito, só faltava a aletria. Mas desta vez não deu.

Lígia entrou no seu quarto e fechou a porta devagar. A cama estava primorosamente feita, com a colcha esticada e a pequena almofada aconchegada debaixo dela. Normalmente não era assim, ao sair de manhã para a escola puxava-lhe as orelhas e pronto. Mas hoje era terça, e às terças era o seu dia preferido, e sabia que a mãe existia por completo e estava tudo bem. Às terças estava sempre tudo bem e a mãe fazia-lhe a cama. Já não sabia se estava triste com o que acontecera, ou por estar triste numa terça feira. Às terças feiras não se está triste e vê-se televisão até tarde. Sentou-se na cama e afinal já não queria chorar mais, e aquela sensação de que ia chorar até adormecer desaparecera. Paciência, faz de conta que não aconteceu. Tentava com muita força pensar assim, mas nem por isso conseguia.

Saiu do quarto e surpreendeu a mãe que saltou ao vê-la. Não te ouvi chegar. Cheira bem, disse Lígia e pensou que a música tocava mais alto que o normal. Diz aos teus olhos garotos, vivos marotos, pretos rasgados, lindos rasgados. Gostava daquele, dava-lhe vontade de cantar. Sabia perfeitamente que na faixa a seguir a mãe ia chorar, com sorte talvez não, uma vez que era terça feira. Fazia figas para que a mãe não se virasse contra a parede. A música começou e a mãe virou-se para a parede. Quem por amor se perdeu, não chore, não tenha pena, uma das santas do céu foi Maria Madalena. Rodou os ombros para trás, ajeitou a madeixa e maldisse a cebola. Perguntou-lhe pela escola. Lígia não aguentou mais e perguntou-lhe quem era Maria Madalena. Quem? Maria Madalena, repetiu. Porque é que queres saber? E as lágrimas de Lígia saíram de repente. A mãe abraçou-a e tentou não chorar mais alto que ela. Depois levantou-se e carregou no stop do rádio. Vamos comer, disse.

Mais tarde iria à mochila de Lígia ver os seus cadernos e encontraria a redacção que tinha como título, o meu herói preferido. E por baixo, o subtítulo, Maria Madalena. Iria encontrar também uma nota a vermelho da professora que dizia: não corresponde ao trabalho solicitado, deverá repetir. E um pequeno post it a marcar uma reunião consigo, na próxima quinta feira.

A cassete foi enfiada na gaveta das cuecas, e nessa noite dormiu ao lado de Lígia.





Referências musicais:
"Maria Madalena" - Lucília do Carmo, Gabriel de Oliveira /pop, c arranjos de Fernando Freitas
"Olhos garotos" - Lucília do Carmo, Linhares Barbosa/ Jaime Santos

2 comentários:

Anónimo disse...

Nao sei bem como nem porque, mas algo me levou a querer dizer-te qualquer coisa!

Continuando:
"... agora mais velha, Lígia reconhece que tamanha singeleza só a poderia fazer sorrir... "

(a própria) :)

míscaro disse...

é a primeira vez que uma personagem me escreve um comentário... :) obrigada bjnhos