terça-feira, fevereiro 26, 2008

pérola do rio sabor

( Diana Costa, Complex Connection, Data?)


Benedita tem um restaurante só para almoços. Situa-se numa rua cuja inclinação é fora do normal. Felizmente para Benedita, o estabelecimento fica no começo da rua, e as suas varizes não se ressentem mais do que o normal, e esperado.


Instalara-se na zona há cerca de dezoito anos. É transmontana de origem. O restaurante está em seu nome mas, para todos os efeitos, o marido assume-se como gerente. Este apresenta-se na Casa por volta do meio dia, sempre bem arranjado, desempenhando, na perfeição, o papel de anfitrião e homem trabalhador. Apenas perante os Outros, porque é bem claro quem comanda as operações.


“Pérola do Rio Sabor” o nome escolhido, e ficou desde logo conhecido como sendo um restaurante de boa qualidade, por toda aquela zona da cidade. À hora de almoço está sempre lotado; taxistas, motoristas, viúvos, lojistas, e outros, com mesa reservada e tudo.
Benedita acorda todos os dias às seis da manhã, e vai à Praça comprar tudo o que precisa para os dois Pratos do Dia.


Pelas oito, passa a carrinha do pão, que faz a entrega das carcaças necessárias ao dia. Transacção que se realiza através da janela do estabelecimento.
Bruno é o filho. Tem 15 anos, e uma paixão febril por todo o tipo de música electrónica. Benedita não compreendia, muito menos aceitava aquilo. Sempre achou, do fundo do seu coração, que o lugar de Bruno é nas mesas, a ajudar a Mãe.


Para Bruno, tudo Aquilo o enervava. Todos os dias as mesmas pessoas, as mesmas coisas para fazer, o pai, a mãe. Andava a alguns meses a planear escapar daquilo tudo. E um dia, aconteceu. Saiu de noite, rumo não se sabe muito bem onde. Provavelmente, para casa de algum amigo onde pudesse sonhar em pôr música, numa discoteca importante da capital.
Quando se deu conta do sucedido, Benedita, ficou muito parada. Estava na sua cozinha, ainda às escuras, por ser manhã cedo. Fixou as alheiras penduradas na parede junto ao fogão, e disse: filho da puta.


Pegou na faca (na grande), afiou-a na pedra, e começou a cortar os calos duros das couves, depois migou tudo o que tinha para migar, descascou, e ligou os lumes. Entretanto chegou o pão e fez-se a transacção. Bateu os bifes e pôs as mesas. O dia continuou. Chegou o marido, para a cara de quem não olhou, e a Casa foi-se enchendo de gente que queria ser servida o mais rápido possível.
Benedita sentia as pernas a tremer, mas nada disse. Continuou como se de um dia normal se tratasse.


Pelas três e meia, o espaço estava de novo, vazio. Benedita pôs a loiça na máquina, e guardou pequenos restos de comida em tupperwares. Limpou a bancada. Depois de ter tudo arrumado e limpo, lembrou-se que quarta-feira (o dia seguinte), era de bifes de cebolada. É preciso deixar a cebola esturgida sobre os bifes, de um dia para outro, de contrário, não ganham sabor.


Foi buscar a faca e as cebolas. Lavou-as, tirou-lhes a casca, e começou a cortar rodelas finas, cada vez mais. Ao primeiro corte, Benedita sentiu aquele vapor nos olhos. Continuou a cortar e os olhos encheram-se de lágrimas. Depois, pousou a faca e as cebolas no tampo da mesa. Sentou-se no banco da cozinha. E chorou, como nunca tinha chorado.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Ela

(Uemura Shoen, 1918, Flame)


Ela não precisava de dizer uma palavra. Nem se sabe explicar. Era um baixar da cabeça imperceptível para todos (até os pássaros mais atentos seguiam o seu caminho, sem reparar).
Tudo se realizava na parcimónia das horas compridas, sem pressas ou denúncias.


Caminhava ausente, a pensar em tudo. Tentava separar os pensamentos das emoções, dos imprevistos, das dores. Às vezes conseguia.
Como um recorte infantil, pairavam à frente do seu nariz , e só por ela visíveis, dezenas de papelinhos com códigos, cores, palavras soltas, versos, imagens, partes de fotografias,de canções.


Depois, a tarefa era ordená-los por importância ou interesse. Aqueles que ela não compreendia, guardava para mais tarde, na esperança de conseguir perceber o seu significado.


Os que conseguia ordenar eram fixados pelos seus olhos, e imediatamente levados para um lugar seguro e quente, dentro de si.


Alguns eram esquecidos, por não serem suficientemente verdadeiros.


Enquanto isto, continuava a sua viagem sem que nada a incomodasse.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

o poço

(Akiama Iwao, Which Way Shall We Go, 1989)




Alguns homens discutem entre si:


- No fundo deste poço, existe outro poço. Um pouco mais pequeno, mas bastante parecido.

- À volta de ambos crescem umas pequenas plantas verde escuro. Quase negras.

- No fundo de ambos os poços não existe nada. Nada. Nem sequer é vazio, é simplesmente Nada.

- Antigamente, no tempo em que chovia muito, o poço tinha água até acima, e flores férteis.
-
Mas não há provas de tal ter acontecido.
Por fim, unânimes:
- E sem provas, não se pode julgar o passado.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

desvio



A Rapariga estava muito triste. As coisas não tinham corrido como planeara. E como planeara tudo tão bem. Até à mais ínfima possibilidade, hipótese ou sopro. Agora, via-se perante uma série de marcações que não tinha ensaiado e, pior que tudo, a história transformara-se, estava diferente.


Tudo isto metáforas, porque a sua vida era bastante real. Demasiado até.


Sentia-se desamparada e pequena, a ser engolida pelo tamanho do Mundo. Gigante, em relação a si.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

o prémio




Teodora não sabe o que é tanto dinheiro. Dinheiro que dá para comprar carros e casas, e todas as coisas até um limite difícil de imaginar.

Teodora tem o passe L2. Apanha todos os dias quatro transportes, duas vezes por dia. Normalmente não anda com dinheiro no bolso.

Soube de tudo no café onde costuma ir tomar a bica de manhã. Não lhe puderam entregar o prémio, era demasiado.

Nesse dia, apanhou os transportes habituais, para chegar ao destino habitual. Quando lá chegou disse à melhor amiga: - ganhei o 2º prémio, - estás milionária!, - é, é muito dinheiro. Entretanto, já todos sabiam da notícia e pairava sobre as cabeças, um sopro de irrealidade.

Teodora tinha ganho milhões e não sabia muito bem o que isso significava.

Como num dia normal, regressou a casa, apanhou o autocarro e depois o outro autocarro, e depois o metro, e depois o último autocarro. Lanchou torradas com bastante manteiga e bebeu leite quente com café solúvel. Ajudou a mãe com a roupa e fez as camas de lavado. A seguir ao jantar, viu a novela. Deitou-se cedo à hora de sempre, e adormeceu tranquila, como de costume. Sonhou que jantava naquele Chinês grande e bonito, e que comia tudo o que lhe apetecia. Até gelado frito.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

hora de almoço

(Alice Murdoch, Morsel, 2005)



Felícia ansiava que chegasse a sua vez de almoçar. O tempo passava e a sua fome tornava-se maior que o balcão que a separava do Mundo. Estava desconfortável e tudo parecia incentivar essa sensação.

Porque se continuavam a aproximar as Pessoas. Os idosos. Porque não entendiam que ela não podia fazer mais nada?

Como felino a marcar o território, mantem as unhas bem rentes ao tampo da madeira macia.

Na sua cabeça ecoa uma contagem crescente - meio dia e dez, meio dia e quinze, meio dia e vinte e quatro...

O nacarado do verniz quase estala. O seu brilho ameaça todos aqueles que ousam aproximar-se.