domingo, agosto 31, 2008

o exaustor

( Jacek Yerka, título? data ?)

Emília vivia de um 2º andar e começava a pensar que lhe fazia falta um exaustor. As suas sardinhas eram uma instituição mas começava a tornar-se bastante insuportável o volume de fume, dentro de casa. Além disso, a emproada da vizinha do prédio adjuvante, não parava de lhe rogar pragas ao longo de todo o processo gastronómico.

Era realmente muito bom viver numa casa e ter um tecto branco em cima da cabeça. Às vezes não conseguia adormecer, ou acordava a meio da noite preocupada com a chuva que caía. Ficava muito atenta até se tranquilizar, ao perceber que não ouvia o barulho do zinco espancado, mas o som seguro da a água a bater nos estores. As janelas eram uma inovação em que ainda não confiava. Tinha muito medo das abrir, fazia-lhe impressão a parede recortada – um buraco no meio da casa. Preferia mantê-las fechadas e carpia queixosa, sempre que os netos se debruçavam a ouvir música à janela.
A máquina de lavar roupa era outra coisa que evitava. Não achava normal aquele estardalhaço, e sempre que as filhas a ligavam, tinha o pressentimento que ia acontecer uma grande desgraça. Nunca a usava, e lavava tudo o que tinha para lavar na banheira, com sabão amarelo.

Era muito bom não ter de partilhar a cama com o marido e um alguidar de plástico. Mas sentia-se uma desconhecida em relação a tudo. A mulher que era, tinha ficado no descampado com as mimosas. Não tinha de ir buscar água à rua, não tinha que pôr a mesa lá fora, não tinha de pendurar sacos de plástico com água para enxotar as moscas, não tinha de lavar a roupa no tanque com as irmãs e as cunhadas, não tinha de ir dar trinca às pitas, nem que as matar quando chegasse a altura.

Dava por si, muitas vezes sentada no sofá, a olhar para o infinito do armário de fórmica, como se estivesse à espera que lhe dissessem o que fazer.
As sardinhas eram o reduto do que era, e do que queria continuar a ser. No acampamento dirigia as operações dos grelhados, sempre que era preciso. Agora a tarefa estava reduzida a um ou dois dias por semana, e os mais novos começavam a preferir a casa de hambúrgueres, do outro lado da estrada.

Mas Emília não se detinha por nada, neste caso não. Não lhe iam tirar as sardinhas. E depois de muito matutar no assunto, começava a vislumbrar uma solução. Difícil é certo, mas coisas fáceis nunca foram com ela. Ironicamente, a esperança que começava a acalentar residia num electrodoméstico.

Vira-o pela primeira vez num folheto distribuído pelas caixas do correio, ainda virgens de conteúdo. Guardara-o entre a mama esquerda e o soutien, e à noitinha perscrutou-o atentamente, sem conseguir decifrar a descrição em anexo. Bastou-lhe ver o preço, que era comportável, e o brilho do inox.

Tratou de tudo sozinha, foi à loja, encomendou o objecto, e até pagou um extra para a entrega e a montagem. Escolheu um dia específico em que a família estava na feira das festas da cidade, e em que estava sozinha com o neto de um ano. Alegara estar doente do pé, e deixaram-na estar sossegada.

Tudo correu pelo melhor, e a diferença do espaço era mínima. Experimentou grelhar um pimento, e o ar permaneceu limpo. O barulho não a incomodou e continuou a grelhar, tudo o que havia no frigorífico. Respirava felicidade e alívio. Estava pronta para abraçar a casa, e tudo que viesse por acréscimo.

quinta-feira, agosto 21, 2008

mais que suficiente




A rapariga desceu a rua com a pulseira electrónica atracada ao tornozelo esquerdo. Vestia uma saia pelo joelho que lhe acompanhava a linha das ancas, e trazia ao ombro uma mala de napa preta, moderna. Na cabeça sobrepunham-se cachos de caracois dinâmicos e brilhantes.

Passou de relance pela paragem dos autocarros, verificou o horário colado no vidro e seguiu para o lado oposto. Seria mais rápido ir pelos seus próprios meios.


A rua era bastante íngreme, e a pulseira comprimia-lhe um qualquer tendão na parte frontal do pé. Sentia a dor a cada passo que dava, e a descida tornava tudo mais penoso.


Chegou a final da rua, olhou para o toldo da pastelaria e de seguida para o relógio. Percebeu que tinha meia hora para beber um café e regressar a casa. Respirou aliviada e olhou de viés para o pé. Seria mais que suficiente, e a subir não é assim tão difícil como dizem.

sexta-feira, agosto 15, 2008

como deve ser !






Adoravelmente implacáveis.
Miss Fields maravilhosa, como sempre.






segunda-feira, agosto 11, 2008

esperar que derreta

(Parvati Melton)


Irene sentia vontade de pegar num carro e rumar ao desconhecido, mas a adversidade de não ter carta de condução não lhe permitia satisfazer o desejo.Pensava o quão maravilhoso é ter uma família e saber com o que contar. Pensava no que seria se estivesse sozinha no Mundo, como a Grã-duquesa Anastasia à procura dos pais e da avó. Reflectia seriamente até que ponto não era um pecado estar, por momentos, a preferir não ter ninguém. Não queria saber dos problemas dos outros, nem das limitações, nem das vontades. Estava farta. Fartinha até à última ponta, do último cabelo. Quer dizer asneiras mas não pode, porque está num sítio onde não se podem dizer asneiras. Também não pode gritar ou destruir coisas. Resta-lhe pouco para fazer, a não ser fixar um ponto na janela à sua frente, e esperar que ela derreta.

sexta-feira, agosto 08, 2008

confetis e after shave



Gerânio pensava quase todos os dias que era uma infelicidade ter nome de flor. Preferia que lhe chamassem Artur. Tinha uma barbearia – Barbearia Moderna – letreiro que pintou cuidadosamente sobre o umbral da porta, em azul celeste. O estabelecimento era o seu mais-que-tudo, e Artur espalhava amor por aqueles 4m2. A lixívia e os ambientadores de aerossóis eram os seus aliados diários.

De manhã, tudo tinha de estar perfeito para a chegada do primeiro cliente do dia. Gostava de alinhar os instrumentos na bancada e de ter as toalhas turcas dobradas em cima desta. Sobre as toalhas espalhava sempre algumas gotas de Old Spice.

A vida era boa e a reputação no bairro não podia ser melhor, Artur era o único barbeiro nas redondezas que desinfectava as lâminas, num aparelho de esterilização de biberões adaptado para o efeito.

Só havia uma coisa que o afastava da tranquilidade e paz que normalmente sentia. Cátia. Pele de cobre e olhos claros, fruto de um alívio ultramarino que acabou em boda. Era uma rapariga pensativa e bastante actualizada quando às tendências da estação. Se a moda ditava amarelo, amarelo era a sua escolha, fazendo questão de usar pelo menos uma peça dessa cor. Pesquisava com afinco os modelos “in” e os modelos “out” nas revistas de teor social. Gostava de sentir que pertencia aquele mundo de celebração e confetis.

Um dia disse às amigas que champanhe com frutos silvestres era uma bebida divinal. Um misto de fascínio e inveja passou-lhes pela cabeça, algumas riram-se bastante.

Cátia fazia da janela do seu quarto o seu posto de controlo. Apoiava o cotovelo no umbral e suportava o peso da cabeça com a palma da mão. Era aí que Artur a via e a adorava, como a uma santinha no escapulário.

Não fosse uma ligeira curvatura da rua, a porta dele e a janela dela ficavam quase frente a frente. Artur passava o dia a desejar olhar para ela, num exercício de difícil equilíbrio entre a descrição e o olhar fixo. Felizmente tinha uma clientela fiel, o que lhe permitia apaziguar por alguns instantes, a ansiedade que crescia dentro de si. Começara já a ter problemas gástricos e insónias ocasionais. Chegaram até a perguntar-lhe se andava com algum problema.

Numa sexta-feira à noite em que nem o chá, nem o leite quente, nem a televisão pareciam fazer efeito, Artur sai de casa. De cabeça perdida entra na barbearia. Fecha a porta, sai para a rua, e olha fixamente para a parede à sua frente. Ergue a navalha, e começa a escavar bem fundo na parede – ARTUR AMA CÁTIA.

terça-feira, agosto 05, 2008

e outras coisas

(Maurice Mbikayi, 2007, África do sul)

Lucília não augura nada de bom. É o terceiro dia em está a substituir a colega, num complexo de escritórios. Prefere mil vezes trabalhar em hospitais, ninguém lhe diz uma palavra e ninguém se recorda do nome dela. É melhor assim. É reservada, não gosta de falar de si, muito menos que lhe façam perguntas.

Vive contrariada desde que veio viver para Portugal. Não quer ter amigos, nem confiar em ninguém. Vizinhos, só os lá da Terra. Família, nem se fala. A irmã há de vir com o cunhado, mas só daqui a uns meses, em princípio.
As coisas têm corrido bem. Dá para o quarto e para a comida, o que sobra envia para Casa. Sai de manhã todos os dias às seis, e regressa todos os dias às oito. Duas vezes por semana faz noite no hospital. Queria lá trabalhar sempre, é tudo mais silencioso e resignado. As coisas são como são e ninguém tenta que sejam de outra maneira.

Quando dá liga para casa da irmã para falar com os filhos. Falam sobre as coisas, do trabalho aqui, do trabalho ali, sobre a escola, e eles dizem sempre que está tudo bem. Ela fica com os olhos a brilhar e aperta a medalha que traz ao pescoço com força. Diz que por cá também está tudo bem, que tem uma senhora amiga e que vão à Igreja todos os domingos.

Não encontra sentido em dizer-lhes que se sente sozinha, e que tem o coração apertado de saudades e outras coisas.