quarta-feira, dezembro 31, 2008

votos para o ano que é já amanhã


Confiança ao alto.
É o meu voto unificador de todos os outros.
Para amanhã e depois e depois. Para mim e para todos.


domingo, dezembro 14, 2008

segunda-feira, dezembro 01, 2008

a carta

(do livro: Curso de Magia Milo-Nestlé, ?data)

O seu sonho era o seu parapeito. O seu sonho era ser mágico. Reunir multidões à volta de uma mesa pequena, iluminar as suas mãos finas e torná-las enormes e vivas. A varinha mágica, o jornal encantado, a carta misteriosa, o lenço cómico. Queria aprender tudo até à perfeição e essa procura vivia dentro dele como uma prece. Quando conseguia, descia sobre ele um calor muito intenso e rápido, numa onda electrizante que o posicionava no mundo. Quando não conseguia, voltava a tentar até conseguir outra vez.

Separava-o da vida a inquietação que os outros lhe provocavam. Gostava das suas multidões imaginadas, sem face ou cor de cabelo. Mas as pessoas reais provocavam-lhe vontade de fugir, correr e procurar abrigo. E voltava às cartas e treinava, treinava, até ter sono ou fome. Depois saia do quarto e procurava o que comer, para regressar de novo às quatro paredes que melhor o conheciam.

Amanhecia o dia e com ele a rotina urgente das coisas para fazer. Aulas e autocarros, colegas, professores. Exigências que não compreendia mas que aceitava, resignado ao papel que lhe fora atribuído sem perguntas. Durante o todo dia mantinha-se afastado das piadas, dos comentários, dos momentos de estudo colectivo. Fazia os trabalhos de grupo transmitindo o estritamente necessário, e acatando as instruções decididas pelos outros.

A quem se tentava aproximar não sabia o que dizer, limitando-se a responder a perguntas. E quando isso acontecia, agarrava-se instintivamente ao baralho e cartas que guardava sempre no bolso.

Um dia, a rapariga do bar perguntou-lhe se ele fazia magia, e uma fissura abriu-se de imediato no seu mundo.

Porquê? Perguntou. Deixaste cair uma carta, um oito de copas. É minha, disse. Eu sei, acabou de cair do teu bolso esquerdo. Não reparei, disse. És mágico não és? Sou, respondeu a suar de todos os poros do seu corpo magro. E de seguida tirou-lhe cinquenta cêntimos da orelha direita.

Depois sentou-se devagar e pediu-lhe um pacote de açúcar que mastigou de seguida.

sexta-feira, novembro 21, 2008

sexta-feira, novembro 07, 2008

tudo o que sei

(Kawase Hasui, Agatsuma Gorge, 1943)



O homem chorou e disse

Tudo o que eu sei cabe dentro desta caixa
Todas as coisas que recolhi cabem nesta caixa
As conchas, os tesouros, as pedras, os galhos
As viagens mais pequenas também aqui cabem

sexta-feira, outubro 24, 2008

quem por amor se perdeu



A rapariguinha chegou a casa triste, num olhar impróprio dos seus onze anos. Percorreu todo o caminho de cabeça baixa e mochila a rasar o chão, a querer esquecer aquele dia inteiro. Suplicou baixinho que ninguém a reconhecesse no caminho, nem vizinhos ou colegas, nem a senhora da merceeiria que lhe dava sempre um par de broas de canela, quando passava por ela. Só queria chegar a casa e chorar à vontade, deixar cair as lágrimas pela cara e ficar vermelha depois, e não se importar se alguém estaria a ver porque ninguém estaria a ver.

Chegou finalmente à sua porta, renovada em alumínios seguros e difíceis de empurrar. Rodou a chave de casa recém adquirida, alcançou o hall de entrada e subiu os lances até ao seu andar. Encostou o ouvido à porta e ouviu a cassete da mãe a tocar. Teria preferido que ela não tivesse em casa. Tinha que entrar de qualquer forma.

Júlia fazia o jantar na refulgente alegria da folga semanal a que tinha direito. Um jantar mimado, com o apuro da atenção e do amor. Aquele dia era um dia bom, daqueles em que se é capaz de distinguir o acessório do essencial. Dia de arroz de tomate, como deve ser. Tomate sem pele e maduro, sal no ponto, salsa a finalizar o aspecto. A última vez que tinha feito peixinhos da horta, já não se lembrava quando tinha sido. Podia ter sido há um ano, ou há seis meses, ou há muito mais tempo que isso. Surpreendia-se de ainda ser capaz de cozinhar outras coisas além de febras, arroz branco, e ovos com salsichas. Para ser mesmo o jantar perfeito, só faltava a aletria. Mas desta vez não deu.

Lígia entrou no seu quarto e fechou a porta devagar. A cama estava primorosamente feita, com a colcha esticada e a pequena almofada aconchegada debaixo dela. Normalmente não era assim, ao sair de manhã para a escola puxava-lhe as orelhas e pronto. Mas hoje era terça, e às terças era o seu dia preferido, e sabia que a mãe existia por completo e estava tudo bem. Às terças estava sempre tudo bem e a mãe fazia-lhe a cama. Já não sabia se estava triste com o que acontecera, ou por estar triste numa terça feira. Às terças feiras não se está triste e vê-se televisão até tarde. Sentou-se na cama e afinal já não queria chorar mais, e aquela sensação de que ia chorar até adormecer desaparecera. Paciência, faz de conta que não aconteceu. Tentava com muita força pensar assim, mas nem por isso conseguia.

Saiu do quarto e surpreendeu a mãe que saltou ao vê-la. Não te ouvi chegar. Cheira bem, disse Lígia e pensou que a música tocava mais alto que o normal. Diz aos teus olhos garotos, vivos marotos, pretos rasgados, lindos rasgados. Gostava daquele, dava-lhe vontade de cantar. Sabia perfeitamente que na faixa a seguir a mãe ia chorar, com sorte talvez não, uma vez que era terça feira. Fazia figas para que a mãe não se virasse contra a parede. A música começou e a mãe virou-se para a parede. Quem por amor se perdeu, não chore, não tenha pena, uma das santas do céu foi Maria Madalena. Rodou os ombros para trás, ajeitou a madeixa e maldisse a cebola. Perguntou-lhe pela escola. Lígia não aguentou mais e perguntou-lhe quem era Maria Madalena. Quem? Maria Madalena, repetiu. Porque é que queres saber? E as lágrimas de Lígia saíram de repente. A mãe abraçou-a e tentou não chorar mais alto que ela. Depois levantou-se e carregou no stop do rádio. Vamos comer, disse.

Mais tarde iria à mochila de Lígia ver os seus cadernos e encontraria a redacção que tinha como título, o meu herói preferido. E por baixo, o subtítulo, Maria Madalena. Iria encontrar também uma nota a vermelho da professora que dizia: não corresponde ao trabalho solicitado, deverá repetir. E um pequeno post it a marcar uma reunião consigo, na próxima quinta feira.

A cassete foi enfiada na gaveta das cuecas, e nessa noite dormiu ao lado de Lígia.





Referências musicais:
"Maria Madalena" - Lucília do Carmo, Gabriel de Oliveira /pop, c arranjos de Fernando Freitas
"Olhos garotos" - Lucília do Carmo, Linhares Barbosa/ Jaime Santos

segunda-feira, outubro 13, 2008

domingo, outubro 12, 2008

o telefonema


Sessenta e três, seis três. Três anos de amor mais dois de vida em comum. Promessas de cortinados e cruzeiros. Tudo desaparecia à velocidade com que tirava as bolas da tômbola.

Catorze, um quatro. Felizmente desde há duas semanas ninguém fazia bingo. Não estava a suportar a felicidade alheia. Até o pequeno alvoroço que se gerava se alguém fazia linha, lhe apertava o estômago, e uma ira subterrânea que não sabia que existia, começava a pontapear a sua barriga.

Refugiara-se no pequeno ser que a esperava sempre feliz, em casa. Lady era sua companheira mais fiel, desde há sete anos. Estavam sempre lá, uma para a outra. Lady lambia-lhe a cara quando a sentia mais triste, e apoiava a pequena cabeça no colo de Fátima nas noites em que lhe adivinhava a noitada em frente à T.V. Fátima tratava-a como a um filho, num entendimento desinteressado, próprio dos grandes amigos.

Mas o trabalho tinha que continuar. Um trabalho cheio de contacto humano, e expectativas humanas. Entrava às 15h, dava-lhe tempo para fazer o almoço a Lady, de se vestir e maquilhar como deve ser, de arrumar a casa, e de beber a bica, no café lá em baixo, calmamente ao balcão. Antes de sair e de se despedir de Lady, ligava sempre a televisão, no volume mínimo, para a pequenina ter companhia durante o dia e a noite, até ao seu regresso.

Descobriu tudo num dia como os outros. Um dia normal em que ele saíra cedo e ela arrumava os restos do pequeno almoço, ainda de negligé roxa e transparente. O telefone tocara e ela pensou que era ele. Uma chamada do meio do trânsito, plena de saudades e recordações da noite anterior. Mas não era ela, era outra pessoa, uma mulher. E as coisas mudaram.

Nesse dia manteve a rotina habitual, com os telefonemas a meio da manhã, ao almoço e ao lanche. Chegou a casa à noite, como sempre. Lady recebeu-a com latidos carentes, como sempre. Ele chegou às 22.30, como sempre. Jantaram normalmente, ele elogiou a comida, ela agradeceu. Ela estava sem fome e Lady estava anormalmente irrequieta. No final do jantar, pelo pudim flan, ela disse: a tua mulher ligou, hoje de manhã. Ele disse: quem?, e ela atirou o jarro da água para o chão. E depois o prato dele, e depois ficou muito calma e disse: metes-me nojo. Ele não disse nada.

Ela foi ao quarto e trouxe tudo o que era dele. Dois anos de roupa e perfumes e lâminas de barbear. Amontoou tudo no hall de entrada. Foi à cozinha, pegou numa faca enorme e disse: sai. E ele saiu.

segunda-feira, outubro 06, 2008

e nada mais



O sal começa a fazer o seu efeito de purga e adormecimento. Através da água turva é possível ver-se dois vergões avermelhados em cada pé.

Mais uma festa sem canapés, mais um ovo estrelado para o jantar. Basta um ovo para acalmar um estômago vazio. Um ovo, e um copo de qualquer coisa. O que houver.
As expectativas de camarões enfolhados, espetadas de fruta e anchovas em ararutas, tinham saído completamente logradas. Flutes de champanhe e nada mais. E talvez fosse espumante, era demasiado doce.

A toilette era proporcional aos papeis que lhe eram atribuídos, sempre a mesma de sempre. De qualquer forma, ninguém ia reparar. Esse tempo já era. Era um passado tão distante que parecia nunca ter existido.
Tivera o cabelo preto pela cintura, em trança, ou bem apanhado lá no alto. Agora era preto, às vezes. Outras, para o acobreado. Conforme o estado de espírito e a marca da tinta.

Estava tudo tão bonito na festa. Todos luminosos, na esperança de serem captados pelos obturadores ainda pouco vorazes de uma indústria recém-nascida.
Sabia-lhe bem ser cumprimentada, ser reconhecida, e naqueles momentos sentia que fazia sentido, tudo em geral. Sentia-se detentora de um qualquer lugar no lamé instável.

Depois da noite de luzes, a casa esperava-a, a mesma de sempre, de há anos, com os remendos de há anos. E só desejava tirar os sapatos e pendurar o figurino no cabide de madeira. Era uma espécie de alívio, uma espécie de tristeza. Acima de tudo queria comer um ovo e beber qualquer coisa.

bastava um ovo

O sal começa a fazer o seu efeito de purga e adormecimento. Através da água turva é possível ver-se dois vergões avermelhados em cada pé.


Mais uma festa sem canapés, mais um ovo estrelado para o jantar. Basta um ovo para acalmar um estômago vazio. Um ovo, e um copo de qualquer coisa. O que houver.
As expectativas de camarões enfolhados, espetadas de fruta e anchovas em ararutas, tinham saído completamente logradas. Flutes de champanhe e nada mais. E talvez fosse espumante, era demasiado doce.



A toilette era proporcional aos papeis que lhe eram atribuídos, sempre a mesma de sempre. De qualquer forma, ninguém ia reparar. Esse tempo já era. Era um passado tão distante que parecia nunca ter existido.
Tivera o cabelo preto pela cintura, em trança, ou bem apanhado lá no alto. Agora era preto, às vezes. Outras, para o acobreado. Conforme o estado de espírito e a marca da tinta.



Estava tudo tão bonito na festa. Todos luminosos, na esperança de serem captados pelos obturadores ainda pouco vorazes de uma indústria recém-nascida.
Sabia-lhe bem ser cumprimentada, ser reconhecida, e naqueles momentos sentia que fazia sentido, ela e tudo em geral. Sentia-se detentora de um qualquer lugar no lamé instável.



Depois da noite de luzes, a casa esperava-a, a mesma de sempre, de há anos, com os remendos de há anos. E só desejava tirar os sapatos e pendurar o figurino no cabide de madeira. Era uma espécie de alívio, uma espécie de tristeza. Acima de tudo queria comer um ovo e beber qualquer coisa.

domingo, setembro 28, 2008

domingo, setembro 14, 2008

marisa ia fazer uma festa

( pub M.A.C cosmetics)


Marisa ia fazer uma festa. Óleos e velas, e coisas assim. Incensos e écharpes transparentes, pelo sofá e a cobrir a cama. Fez as mãos na Cláudia, resistiu ao gel mas escolheu uma cor particularmente brilhante, e sexy, segundo Cláudia. Confiava plenamente nela, nestas coisas que implicavam o embelezamento do corpo. Também resistiu ao estilo brasileiro de remoção capilar, mas desta vez as suas virilhas ficaram mais desertas que nunca. Sentia-se um pouco nua. Cláudia, adivinhando-lhe os pensamentos disse que era esse o objectivo.


Lera todo o tipo de dicas na internet e em revistas femininas. Era um novo mundo que surgia diante dos seu olhos, onde se sentia hesitante e a pisar em falso. Agora sabia uma montanha de informações acerca de comidas e massagens, vendas e algemas felpudas, e conhecia um leque variado de vestuário em cabedal. Ainda pensou em comprar umas calças em couro preto, mas no provador sentiu-se tão apertada e desconfortável que decidiu não as levar. Além disso, não tinha nada para
condizer , e comprar umas calças para usar só uma vez não valia a pena.

Estava um pouco comprometida quando teve de ir à drogaria comprar um queimador de incenso. Esquecera-se completamente de o incluir na lista das compras do Hipermercado. Ainda pensou em desistir desta compra, mas tinha ouvido tantas maravilhas a respeito, que preferiu arriscar o encontro com o Sr. António. Em frente ao balcão, tremeu-lhe a boca ao pedir o objecto e quase pode jurar que ele fez um sorrisinho com os olhos, num esgar de escusada cumplicidade. A ida dele ao armazém pareceu-lhe uma eternidade, e Marisa ainda considerou em aproveitar aquela ausência para fugir, mas os nervos congelaram-lhe qualquer tipo de movimento. Ele regressou com três modelos; dois de madeira em simples, e um de barro com mosaicos de espelho incrustados. Sabia perfeitamente que era aquele último que deveria escolher. Mas não conseguiu. Sentia-se observada, e com os pensamentos devassados. Era tudo demasiado óbvio. Latejantemente óbvio. Optou por um dos madeira. Pagou o que tinha a pagar e, por entre escadotes e cremes nívea, saiu rapidamente da loja. Já cá fora, desceu rapidamente a rua com a boca seca e o coração aos saltos.

Tudo estava em ordem, a casa estava diferente, vibrante. Marisa fazia um esforço enorme para não imaginar o que a mãe diria daquilo tudo. Os pais estavam para o norte, até segunda não regressariam com certeza, mas subitamente deu por si a pensar nas várias possibilidades que fariam os pais regressar. Não, era impossível eles regressarem antes do tempo, nunca tal acontecera.

Sentia o peito comprimido e alertou-se ao ver as velas acesas em redor dos cortinados da mãe. Um incêndio seria o derradeiro castigo. Começou a sentir-se enjoada, com a cabeça à roda, e apagou os pauzinhos de sândalo debaixo de água. Havia agora cinza pelo chão, que rapidamente começou a limpar. Os sapatos de salto fino não se coadunavam com a tarefa e descalçou-se. Calçou as pantufas de pelo azul bebé. De súbito sentiu-se tão triste, só lhe apetecia chorar. Nunca devia ter feito aquilo tudo, tinha sido uma estupidez e o soutien que trazia vestido era dois números a baixo do seu. Achou-se gorda debaixo da camisa de cetim. Sentou-se no sofá, derreada, com a caixa de bombons no colo. Enviou ao namorado uma mensagem escrita a dizer que ele não viesse, que estava com um ataque de alergia, sem conseguir sair da cama.

O que não era completamente mentira.

domingo, agosto 31, 2008

o exaustor

( Jacek Yerka, título? data ?)

Emília vivia de um 2º andar e começava a pensar que lhe fazia falta um exaustor. As suas sardinhas eram uma instituição mas começava a tornar-se bastante insuportável o volume de fume, dentro de casa. Além disso, a emproada da vizinha do prédio adjuvante, não parava de lhe rogar pragas ao longo de todo o processo gastronómico.

Era realmente muito bom viver numa casa e ter um tecto branco em cima da cabeça. Às vezes não conseguia adormecer, ou acordava a meio da noite preocupada com a chuva que caía. Ficava muito atenta até se tranquilizar, ao perceber que não ouvia o barulho do zinco espancado, mas o som seguro da a água a bater nos estores. As janelas eram uma inovação em que ainda não confiava. Tinha muito medo das abrir, fazia-lhe impressão a parede recortada – um buraco no meio da casa. Preferia mantê-las fechadas e carpia queixosa, sempre que os netos se debruçavam a ouvir música à janela.
A máquina de lavar roupa era outra coisa que evitava. Não achava normal aquele estardalhaço, e sempre que as filhas a ligavam, tinha o pressentimento que ia acontecer uma grande desgraça. Nunca a usava, e lavava tudo o que tinha para lavar na banheira, com sabão amarelo.

Era muito bom não ter de partilhar a cama com o marido e um alguidar de plástico. Mas sentia-se uma desconhecida em relação a tudo. A mulher que era, tinha ficado no descampado com as mimosas. Não tinha de ir buscar água à rua, não tinha que pôr a mesa lá fora, não tinha de pendurar sacos de plástico com água para enxotar as moscas, não tinha de lavar a roupa no tanque com as irmãs e as cunhadas, não tinha de ir dar trinca às pitas, nem que as matar quando chegasse a altura.

Dava por si, muitas vezes sentada no sofá, a olhar para o infinito do armário de fórmica, como se estivesse à espera que lhe dissessem o que fazer.
As sardinhas eram o reduto do que era, e do que queria continuar a ser. No acampamento dirigia as operações dos grelhados, sempre que era preciso. Agora a tarefa estava reduzida a um ou dois dias por semana, e os mais novos começavam a preferir a casa de hambúrgueres, do outro lado da estrada.

Mas Emília não se detinha por nada, neste caso não. Não lhe iam tirar as sardinhas. E depois de muito matutar no assunto, começava a vislumbrar uma solução. Difícil é certo, mas coisas fáceis nunca foram com ela. Ironicamente, a esperança que começava a acalentar residia num electrodoméstico.

Vira-o pela primeira vez num folheto distribuído pelas caixas do correio, ainda virgens de conteúdo. Guardara-o entre a mama esquerda e o soutien, e à noitinha perscrutou-o atentamente, sem conseguir decifrar a descrição em anexo. Bastou-lhe ver o preço, que era comportável, e o brilho do inox.

Tratou de tudo sozinha, foi à loja, encomendou o objecto, e até pagou um extra para a entrega e a montagem. Escolheu um dia específico em que a família estava na feira das festas da cidade, e em que estava sozinha com o neto de um ano. Alegara estar doente do pé, e deixaram-na estar sossegada.

Tudo correu pelo melhor, e a diferença do espaço era mínima. Experimentou grelhar um pimento, e o ar permaneceu limpo. O barulho não a incomodou e continuou a grelhar, tudo o que havia no frigorífico. Respirava felicidade e alívio. Estava pronta para abraçar a casa, e tudo que viesse por acréscimo.

quinta-feira, agosto 21, 2008

mais que suficiente




A rapariga desceu a rua com a pulseira electrónica atracada ao tornozelo esquerdo. Vestia uma saia pelo joelho que lhe acompanhava a linha das ancas, e trazia ao ombro uma mala de napa preta, moderna. Na cabeça sobrepunham-se cachos de caracois dinâmicos e brilhantes.

Passou de relance pela paragem dos autocarros, verificou o horário colado no vidro e seguiu para o lado oposto. Seria mais rápido ir pelos seus próprios meios.


A rua era bastante íngreme, e a pulseira comprimia-lhe um qualquer tendão na parte frontal do pé. Sentia a dor a cada passo que dava, e a descida tornava tudo mais penoso.


Chegou a final da rua, olhou para o toldo da pastelaria e de seguida para o relógio. Percebeu que tinha meia hora para beber um café e regressar a casa. Respirou aliviada e olhou de viés para o pé. Seria mais que suficiente, e a subir não é assim tão difícil como dizem.

sexta-feira, agosto 15, 2008

como deve ser !






Adoravelmente implacáveis.
Miss Fields maravilhosa, como sempre.






segunda-feira, agosto 11, 2008

esperar que derreta

(Parvati Melton)


Irene sentia vontade de pegar num carro e rumar ao desconhecido, mas a adversidade de não ter carta de condução não lhe permitia satisfazer o desejo.Pensava o quão maravilhoso é ter uma família e saber com o que contar. Pensava no que seria se estivesse sozinha no Mundo, como a Grã-duquesa Anastasia à procura dos pais e da avó. Reflectia seriamente até que ponto não era um pecado estar, por momentos, a preferir não ter ninguém. Não queria saber dos problemas dos outros, nem das limitações, nem das vontades. Estava farta. Fartinha até à última ponta, do último cabelo. Quer dizer asneiras mas não pode, porque está num sítio onde não se podem dizer asneiras. Também não pode gritar ou destruir coisas. Resta-lhe pouco para fazer, a não ser fixar um ponto na janela à sua frente, e esperar que ela derreta.

sexta-feira, agosto 08, 2008

confetis e after shave



Gerânio pensava quase todos os dias que era uma infelicidade ter nome de flor. Preferia que lhe chamassem Artur. Tinha uma barbearia – Barbearia Moderna – letreiro que pintou cuidadosamente sobre o umbral da porta, em azul celeste. O estabelecimento era o seu mais-que-tudo, e Artur espalhava amor por aqueles 4m2. A lixívia e os ambientadores de aerossóis eram os seus aliados diários.

De manhã, tudo tinha de estar perfeito para a chegada do primeiro cliente do dia. Gostava de alinhar os instrumentos na bancada e de ter as toalhas turcas dobradas em cima desta. Sobre as toalhas espalhava sempre algumas gotas de Old Spice.

A vida era boa e a reputação no bairro não podia ser melhor, Artur era o único barbeiro nas redondezas que desinfectava as lâminas, num aparelho de esterilização de biberões adaptado para o efeito.

Só havia uma coisa que o afastava da tranquilidade e paz que normalmente sentia. Cátia. Pele de cobre e olhos claros, fruto de um alívio ultramarino que acabou em boda. Era uma rapariga pensativa e bastante actualizada quando às tendências da estação. Se a moda ditava amarelo, amarelo era a sua escolha, fazendo questão de usar pelo menos uma peça dessa cor. Pesquisava com afinco os modelos “in” e os modelos “out” nas revistas de teor social. Gostava de sentir que pertencia aquele mundo de celebração e confetis.

Um dia disse às amigas que champanhe com frutos silvestres era uma bebida divinal. Um misto de fascínio e inveja passou-lhes pela cabeça, algumas riram-se bastante.

Cátia fazia da janela do seu quarto o seu posto de controlo. Apoiava o cotovelo no umbral e suportava o peso da cabeça com a palma da mão. Era aí que Artur a via e a adorava, como a uma santinha no escapulário.

Não fosse uma ligeira curvatura da rua, a porta dele e a janela dela ficavam quase frente a frente. Artur passava o dia a desejar olhar para ela, num exercício de difícil equilíbrio entre a descrição e o olhar fixo. Felizmente tinha uma clientela fiel, o que lhe permitia apaziguar por alguns instantes, a ansiedade que crescia dentro de si. Começara já a ter problemas gástricos e insónias ocasionais. Chegaram até a perguntar-lhe se andava com algum problema.

Numa sexta-feira à noite em que nem o chá, nem o leite quente, nem a televisão pareciam fazer efeito, Artur sai de casa. De cabeça perdida entra na barbearia. Fecha a porta, sai para a rua, e olha fixamente para a parede à sua frente. Ergue a navalha, e começa a escavar bem fundo na parede – ARTUR AMA CÁTIA.

terça-feira, agosto 05, 2008

e outras coisas

(Maurice Mbikayi, 2007, África do sul)

Lucília não augura nada de bom. É o terceiro dia em está a substituir a colega, num complexo de escritórios. Prefere mil vezes trabalhar em hospitais, ninguém lhe diz uma palavra e ninguém se recorda do nome dela. É melhor assim. É reservada, não gosta de falar de si, muito menos que lhe façam perguntas.

Vive contrariada desde que veio viver para Portugal. Não quer ter amigos, nem confiar em ninguém. Vizinhos, só os lá da Terra. Família, nem se fala. A irmã há de vir com o cunhado, mas só daqui a uns meses, em princípio.
As coisas têm corrido bem. Dá para o quarto e para a comida, o que sobra envia para Casa. Sai de manhã todos os dias às seis, e regressa todos os dias às oito. Duas vezes por semana faz noite no hospital. Queria lá trabalhar sempre, é tudo mais silencioso e resignado. As coisas são como são e ninguém tenta que sejam de outra maneira.

Quando dá liga para casa da irmã para falar com os filhos. Falam sobre as coisas, do trabalho aqui, do trabalho ali, sobre a escola, e eles dizem sempre que está tudo bem. Ela fica com os olhos a brilhar e aperta a medalha que traz ao pescoço com força. Diz que por cá também está tudo bem, que tem uma senhora amiga e que vão à Igreja todos os domingos.

Não encontra sentido em dizer-lhes que se sente sozinha, e que tem o coração apertado de saudades e outras coisas.

domingo, julho 27, 2008

fim de semana old chum



Ao SÁBADO e ao DOMIGO (não, afinal já não és deprimente. Quer dizer, aceito-te mesmo não assim, mesmo se às vezes te vais abaixo)
fieis amigos,
daqueles que estão sempre lá,
obrigada por existirem.

terça-feira, julho 22, 2008

Susy


Susy fazia lembrar uma estrela do cinema mudo.
Tinha as sobrancelhas finas e em arco, como uma vírgula longa e bem pronunciada, fazendo com que o seu olhar tivesse sempre uma expressão dramática.
Susy era frágil em aparência e o seu andar era compassado como um metrónomo. Andava rapidamente e de uma forma um pouco basculante. A tira colo trazia sempre consigo duas malas, cruzando-se ao peito, que nunca tirava, nem mesmo quando se sentava.
Susy descendia de uma longa linhagem de artistas mascarados de pessoas comuns. Gerações e gerações de pessoas que sentiam que algo estava mal. Que algo não funcionava como deveria funcionar, que tudo era insuficiente sempre. Mesmo quando deveriam estar felizes e estáveis, não estavam. Não conseguiam perceber porquê, era uma insatisfação, uma incompletude.
A bisavó de Susy tinha muitos tiques, dos nervos diziam. Movimentava o pescoço em todas as direcções. Rodava, torcia, flectia, e tudo isto em grande velocidade. Em simultâneo, piscava ambos os olhos.
Era uma pessoa especial, fora do seu tempo. Os filhos foram desígnios não planeados, nem tão pouco queridos. À medida que cresciam, ia-lhes achando piada, mas mantinha-se à distância, sem grandes excessos ou aproximações. O afecto era para quando tinha vontade, e às vezes não tinha. E não se importava de não fazer o mínimo esforço.
Fumava bastante, sentada na sua cadeira de verga, protegida por uma manta de algodão. Observava as crianças à distância, rodeadas de criadas felizes e luzidias.
À noite, por vezes, escrevia poemas acerca da beleza etérea dos petizes, e da fluidez dos seus movimentos.
A avó de Susy morreu dias depois do parto da terceira filha, silenciosamente. Deixou um bilhete com um verso para cada filhinha.
A mãe de Susy era uma Senhora. Ia ao cabeleireiro todas as semanas e por vezes mais que um dia, para retoques. Forrou a casa de casada de espelhos, transformando a sala de jantar num salão feérico e infinito.
Levava Susy à missa e à confissão, todos os domingos. Susy nunca sabia o que dizer mas lá contava aquilo que, com sorte, poderia valer como pecado. Trazia sempre penitências para casa, o que deixava a mãe satisfeita, com a sensação de dever cumprido.
Susy olhava de olhos escancarados o guarda-fatos da mãe e tinha a sensação de que ia sufocar. Não gostava de estar na sala porque se sentia observada. Geralmente ia para debaixo da mesa da cozinha, aí sentia-se segura.
Passou a infância a desenhar e a fazer caretas ao espelho. Vestia o vison da mãe e imaginava-se um urso comedor de homens.
Aos 18 anos ia a subir a rua de casa e encontrou a mãe sentada no passeio. Correu para ela e perguntou-lhe o que tinha acontecido, a mãe respondeu-lhe: cala-te, cabra. Susy ajudou-a a levantar-se, levou-a para casa e deitou-a. Deu-lhe os comprimidos da noite e foi ler para a cozinha.
O dia seguinte amanheceu igual. Susy saiu de casa com a sua echarpe preferida, as suas pulseiras, as suas sobrancelhas bem definidas, e pediu desculpa por tudo. A olhar para o céu.

quarta-feira, julho 09, 2008

love boat


Seria a primeira vez de Iara. Os serviços da agência fora-lhe apresentada por Zenilde, uma amiga brasileira, já muito batida naquelas andanças.

- Vais ver que vais gostar, é tudo pessoal simpático, educado. Há médicos e tudo. Até advogados, vê lá.

Mas Iara não se convencia, achava aquilo tudo muito estranho, contra as leis do desejo e da atracção. E do Amor. No fundo era isso. não conseguia ver as coisas de outra forma que não aquela que aparece na televisão. Em verdade, não conseguia ver as coisas de outra forma porque já tinha conhecido o Amor. Esse Ser, ou Coisa, ou Nome. Ou coisa sem nome. É certo que tinha já passado muito tempo, quase 15 anos. Mas Iara queria com todas as suas forças e pedia a todos os santinhos, sempre com o cuidado de não exagerar, que Essa Coisa Sem Nome, se cruzasse outra vez no seu caminho. Claro que isso lhe complicava a vida, ou pelo menos, tornava-a menos simples.

Iara sonhava em tropeçar na rua e deixar cair a mala para alguém a apanhar, e depois cruzar o olhar com esse alguém. Sonhava em receber flores brancas, margaridas ou assim, de um rapaz que finalmente arriscara declarar o seu Amor de há muito. Sonhava em casar, claro. Numa quinta, claro. Com karaoke e cascatas de champanhe. Sonhava em ter um anel de 1 ano de namoro, um de noivado, e uma aliança. Tudo em mãos diferentes e altamente específicas. Iara tinha decidido que o seu bolo de noiva teria folhas hera douradas (com ouro verdadeiro) à volta. E por dentro seria simples, porque gostava de coisas simples.
Para o mês que vem fazia trinta anos, e a amiga andava preocupada com ela. Queria que a sua vida desse uma reviravolta e que ela conhecesse alguém, finalmente. Ou sem ser finalmente, só para conversar, nada de mais. Mas isso era de mais para Iara. Uma coisa puxa a outra e o que iriam pensar dela? Com certeza que era uma oferecida, uma pessoa que não se sabe dar ao respeito. E falar assim com um homem? E se ele for compremetido? Casado? Derradeira das aflições.

Zenilde decide então agir sem consentimento, e inscreve Iara numa festa de speed dating que teria lugar num veleiro, à noite. Ela também se inscreve. No dia marcado, diz a amiga que precisa de ir ao gatil, onde são voluntárias, mudar a água dos da ala com mais de 10 anos. Iara claro que anui ao pedido da amiga. A meio do caminho apercebe – se que aquele não é o caminho normal, mas não diz nada. A amiga pára finalmente o carro e estão em frente ao cais, à beira rio.

- O que é que se passa?
- Nada, é a minha prenda de anos adiantada.
- Um passeio de barco?
- Sim, um passeio de barco.
- Mas…
- Vais ver que vais gostar, é tudo pessoal simpático, educado. Há médicos e tudo. Até advogados, vê lá.

Iara ainda tentou dizer qualquer coisa como “médicos e advogados?”, mas a amiga arrastou – a até à entrada do veleiro e colocou-se atrás de uma fila de pessoas. Iara estava hipnotizada sem perceber o que estava a acontecer. Chegou a vez delas e a amiga disse o nome de ambas, a um homem vestido de marinheiro. “Bem vindas a bordo”, disse ele.

E depois tudo se apagou. Perdeu as forças nas pernas e só se lembra de alguém lhe agarrar a mão.

segunda-feira, junho 23, 2008

nylon




Mª Odete dizia à colega Zira que tinha lavado os cortinados no fim-de-semana. Zira respondeu que tinha lavado os tapetes, que aquilo se anda sempre a enrodilhar pelo chão, e é uma chatice.
Odete referiu que só lhe faltavam os cortinados da sala de jantar. Zira disse que tinha lavado a colcha do miúdo mais velho, que saíra de casa para ir às compras e, que quando voltara já estava tudo seco.

- É, é. Agora é uma maravilha. Seca tudo num instante.
- Ao menos isso.

Uma colega mais calada, comenta:

- Só falamos de limpezas e de doenças.

As outras concordaram e retomaram o tema inicial, dando especial ênfase ao tecido do cortinado.

- É que aquele tecido é uma maravilha, tira-se do estendal e parece que está passado a ferro. Todo lisinho, todo direitinho.

- Ai é verdade. Ao menos isso.
Olha que hoje ainda lavo a do mais novo.

sexta-feira, junho 20, 2008

piquena consolação


O sol brilhará sempre mais que 8 quilos de prata.

quarta-feira, junho 11, 2008

inesgotável ?


Petrólio,
para quê?
Temos Vontade de Vencer!

sábado, junho 07, 2008

vitória

Olhai o Povo que vive o momento com a intensidade devida.
Maravilhoso Coração.
É com gratidão transbordante que, à distância, os heróis sentem o calor da Pátria.
Viva a bandeira Portuguesa e tudo o que lhe diz respeito.
E pela TV surgem acenos agradecidos.





Vitória








Vitória

terça-feira, junho 03, 2008

auras




- A minha aura é magenta.

- Quem disse?

- A avó.

- Já? A mim não me disse nada…

- És pequena. As cores estão todas misturadas.

- E depois?

- E depois, tem que ficar só uma.

- Então, e se eu não gostar da cor?

- Não digas isso!

- Porquê?

- Porque isso não se diz.

- Porquê?

- Porque a avó disse. Além disso, só há cores bonitas.

- Há cor-de-rosa?

- Acho que sim…lilás ou assim.

- Só espero que me calhe essa!

- Pode ser que sim. Se pensares muito nela, pode ser que fiques com essa.

- Pensaste muito na tua?

- Nem por isso. Calhou-me.

- E agora? Tens de andar sempre com roupas da mesma cor?

- Não, agora “não me posso conformar” e tenho de levar

“energia criativa ao Mundo“.

- … que fixe!

- Pois é.

- O que é que é isso?

- Não sei.

- Foi a avó que te disse?

- Foi.


segunda-feira, junho 02, 2008

domingos

Depois de almoço, domingo.
(Battery Park, NY, 2008)




Depois de almoço, domingo.

(Seurat, Sunday afternoon on the Island of Grand Latte, 1854)



quarta-feira, maio 28, 2008

aconteceu ao herói




O Herói andava pelas ruas da amargura. Não comia, não dormia, não estabelecia relações interpessoais saudáveis. Estava magro e olheirento. E a sua alimentação consistia em barras de chocolate com manteiga de amendoim.

Os amigos desistiram de lhe telefonar porque ele nunca atendia o telefone. Chegaram mesmo a fazer-lhe uma visita surpresa. Bateram-lhe à porta com uma caixa de gelado king size de Strawberry Cheesecake, e nada. Não abriu a porta. Limitou-se a continuar no sofá, de barriga para cima, a olhar para o tecto. Bloqueou o som que ouvia do outro lado da porta e foi como se ele não existisse.

Os amigos não insistiram. Pensaram que não estava em casa e voltaram para trás com o gelado, que acabaram por comer no metro porque estava a derreter.

Enquanto olhava para o tecto focou um determinado local onde o estuque estava escuro, devido à humidade. Concentrou-se como quem está a trabalhar numa coisa muito complicada. As horas passaram por ele, foi ficando escuro e nada. Não se moveu.

O impulso de sair do sofá foi gerado pela falta, já quase biológica, da manteiga de amendoim. O corpo não perdoa, nem disfarça. Depois, levantou-se e foi ao stock da cozinha.

Há uns dias decidira tapar a janela da cozinha com um jornal. Não lhe agradava a ideia de ter um helicóptero sempre a rondar a sua janela, a sua vida. Assim, já não o via, apesar do barulho lá fora continuar imperturbável. Mas era como se não estivesse lá. Concentrando-se um pouco, podia mesmo acreditar que aquele som significava outra coisa qualquer.

Aconteceu um dia, naqueles dias em que só lhe restava um chocolate no armário e a urgência o fazia sair de casa, o destino mudar o rumo do Herói.

Nesse dia, desceu os habituais três lances de escada e principiou-se para a porta da rua. Lá fora corria uma brisa de final de tarde, à qual já não estava habituado. Parou por uns segundos, a tentar perceber que sensação lhe trazia aquele vento contra a cara. Não conseguiu perceber.

Seguiu caminho, tinha ainda de andar dois quarteirões até abraçar a loja de conveniência. À medida que andava mais depressa, a brisa tornava-se mais intensa dando-lhe um brilho de água aos olhos. Apeteceu-lhe respirar fundo mas ao vislumbrar o néon da loja, seguiu viagem. O seu coração batia já rapidamente ao pensar na possibilidade de não existir a quantidade de barras que queria comprar.

Quando estava a chegar ao passeio ouviu um som agudo e suave que como sempre tentou ignorar. O som continuava, persistia. Parou. Mesmo à sua frente, o som ganhou contornos, um corpo. Ali estava um gato que o olhava nos olhos.

O Herói paralisou e, sem saber porquê, retribuiu-lhe a medo o olhar. O gato miou e dirigiu-se a ele rapidamente, enroscando-se nas suas pernas. Olhava para ele e miava, como se o conhecesse há muito tempo. O Herói mais uma vez, não estava a perceber. Mas parecia sentir alguma coisa. Retribuiu-lhe então os gestos.

Agia agora com a naturalidade que já não conhecia em si.
Ali ficou, esquecendo-se do que tinha para fazer.

sábado, maio 17, 2008

bicho de conta



Amor correspondido. (Publico/Artista, entenda-se). 24 fados , um encore planeado e outros três expontâneos. Por vezes a tensão fintou-lhe o resultado, e não o deixou ir até onde consegue e sabe. Não interessa, o que fica do concerto são os momentos contidos, concentrados e verdadeiros.


...ai.


sexta-feira, maio 02, 2008

doces noites de mirtilo



Ao sabor de tarte de mirtilo...o Amor. Assim, inesperado e doce.

É sempre bom ver um filme que previligia a interpretação dos actores, e que lhes dá espaço para existirem, sem grandes arífícios. Simples.

Algumas coisas são especiais neste filme - a Menina Portman (!), a Menina Weisz, o David Strathairn. Vale a pena por eles. Vá lá...o Jude Law também vai bem.

Releve-se também a fotografia que nos cativa do princípio ao fim.

Só uma coisinha... O realizador decidiu convidar a Norah Jones para protagonizar a história central do filme. Nada contra, até prova do contrário...bom, na verdade não resultou. Apesar de ser muito bonito ver a Menina a comer a pie com gelado de baunilha (é mesmo), apartir do 15º minuto de filme a bucolice/ingenuidade da rapariga deixam de fazer sentido. E a interpretação torna-se um pouco enjoativa e desinteressante.

Seja como for, e Miss Jones à parte, é um filme a ver.

Blueberry Nights para todos é o que eu desejo!


quinta-feira, abril 03, 2008

passam por ela


Maria da Luz olha para os seus botões e só lhe vêm músicas à cabeça. Logo agora que tinha de se concentrar noutras coisas. Mas é tão difícil. O pensamento foge-lhe e a sua testa é uma gigantesca banda sonora. De um gigantesco filme.

Olha para os botões porque ouviu dizer que ao focarmos um ponto, estamos a potenciar o nosso poder de concentração. Não deixa de ser verdade, mas só se consegue concentrar no som. No som. No som. No som.

As restantes informações que o mundo lhe transmite, passam por ela e continuam viagem.

quinta-feira, março 27, 2008

I put a spell on you




A rapariga estava petrificada. Sem reacção. Movimento ou raciocínio.
Então, é apenas uma música! Disse ele.

Nem pensar. A música continuava a rodar e nada acontecia. Todos dançavam, absortos num mundo estranho e difícil de explicar. Ninguém parecia importar-se com o que estava a acontecer, simplesmente não era possível. A energia era demasiada, não dava para parar, e os olhos ou estavam fechados, ou abertos não conseguiam ver.

À medida que as músicas iam mudando, a vibração do grupo aumentava. Com a certeza de ali estarem, com a certeza do som que se repetia.
A rapariga permanecia imóvel.

Já passou…Queres água? É apenas uma música… Disse ele.
Mas habituada a acreditar no que lhe diziam, sentia-se enfeitiçada. Uma estátua humana, de vestido curto e cabelo armado.

Que tenho de fazer? Perguntou ele. Mas ninguém sabia.
Muito menos ela.

sexta-feira, março 21, 2008

primavera


(muito pequeno poema)

O Inverno acabou, disse o homem. E debaixo da janela está um monte de coisas inúteis.


Os animais chegam em busca de calor.
Os animais partem à procura do ar frio.

Milhares de pequenas penas caiem no parapeito da minha janela, disse o homem. Os pássaros viajam, por aí. Procuram, por aí.

O céu está diferente porque penso nisso, reflecte o homem. Afinal azul, como sempre esteve.

Surgem cores por aí.

segunda-feira, março 17, 2008

"tudo começou com uma cadeira"


Juno


Há filmes que têm de ser vistos. É o caso.

domingo, março 16, 2008

o cão

(Ay O, stone scissors paper, 1971)


O Cão estava debaixo do enorme edifício. Lá em cima, a cerca de 20 metros, o que é bastante para um cão, erguia-se um gigantesco néon azul, a anunciar O Centro Comercial.



Habituado a olhar para o chão, não se deu conta da evidência, que se situava acima das suas orelhas pretas e caídas. Preocupava-se antes, a farejar o caminho de saída porque toda aquela zona era deveras complicada e sobretudo, com pessoas a mais.


Ele gostava de pessoas, mas é preciso manter uma certa distância de vez em quando, e então sendo assim tantas, ainda se torna mais necessário.



Estava portanto muito confuso, sem sair do mesmo lugar.
Por vezes levantava uma orelha, que caía logo a seguir, provavelmente devido à genética e ao hábito de a ter assim, caída.
Como é óbvio, ninguém lhe ligava nenhuma. Ninguém percebia que ele ali estava, que existia.



As pessoas iam passando com os seus sacos, para os seus carros.
Não era suposto estar ali um cão. Muito menos um cão sem rumo.

sexta-feira, março 14, 2008

paz

(designforpeace)

Pequena referência a esse estado de alma.

domingo, março 09, 2008

caramel



Tudo se passa num cabeleireiro.


Não é Almodovar, dá ares. Não interessa.


Beirute, Mulheres, Alá, Nossas Senhoras, Vernizes Berrantes, Dores, Desejos e Caramel (não vou dizer o que é...).


A Ver.

segunda-feira, março 03, 2008

mariana tenta adormecer as ideias

(Duma, Ainda Não Sei, data?)



Mariana começava a sentir sono. O torpor invadia-lhe o corpo como uma manta pesada e macia. não sentia quase nada, só o fechar de ideias, olhos, e pensamentos.

Tudo se sublimava e como era bom. Parecia ser. As Coisas, aos poucos, iam-se descolando da sua cabeça, deixando mesmo de existir.

O sofá parecia o alvo perfeito, que em comunhão com tudo o que não sentia, ia fechar todos circuitos - não dar/ não receber.

Amanhece, e Mariana no sofá.

O sol acordado bate-lhe na cara, e indica-lhe que é um dia diferente do anterior. Ela sente aquele calor, mas finge que nada se passa.

O sol foi subindo, subindo, até ser inequívoca a sua presença.

Mariana deixa-se estar contorcida no sofá e fixa a janela.
Olha para a luz, todas as ideias voltam a tomar o seu lugar.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

pérola do rio sabor

( Diana Costa, Complex Connection, Data?)


Benedita tem um restaurante só para almoços. Situa-se numa rua cuja inclinação é fora do normal. Felizmente para Benedita, o estabelecimento fica no começo da rua, e as suas varizes não se ressentem mais do que o normal, e esperado.


Instalara-se na zona há cerca de dezoito anos. É transmontana de origem. O restaurante está em seu nome mas, para todos os efeitos, o marido assume-se como gerente. Este apresenta-se na Casa por volta do meio dia, sempre bem arranjado, desempenhando, na perfeição, o papel de anfitrião e homem trabalhador. Apenas perante os Outros, porque é bem claro quem comanda as operações.


“Pérola do Rio Sabor” o nome escolhido, e ficou desde logo conhecido como sendo um restaurante de boa qualidade, por toda aquela zona da cidade. À hora de almoço está sempre lotado; taxistas, motoristas, viúvos, lojistas, e outros, com mesa reservada e tudo.
Benedita acorda todos os dias às seis da manhã, e vai à Praça comprar tudo o que precisa para os dois Pratos do Dia.


Pelas oito, passa a carrinha do pão, que faz a entrega das carcaças necessárias ao dia. Transacção que se realiza através da janela do estabelecimento.
Bruno é o filho. Tem 15 anos, e uma paixão febril por todo o tipo de música electrónica. Benedita não compreendia, muito menos aceitava aquilo. Sempre achou, do fundo do seu coração, que o lugar de Bruno é nas mesas, a ajudar a Mãe.


Para Bruno, tudo Aquilo o enervava. Todos os dias as mesmas pessoas, as mesmas coisas para fazer, o pai, a mãe. Andava a alguns meses a planear escapar daquilo tudo. E um dia, aconteceu. Saiu de noite, rumo não se sabe muito bem onde. Provavelmente, para casa de algum amigo onde pudesse sonhar em pôr música, numa discoteca importante da capital.
Quando se deu conta do sucedido, Benedita, ficou muito parada. Estava na sua cozinha, ainda às escuras, por ser manhã cedo. Fixou as alheiras penduradas na parede junto ao fogão, e disse: filho da puta.


Pegou na faca (na grande), afiou-a na pedra, e começou a cortar os calos duros das couves, depois migou tudo o que tinha para migar, descascou, e ligou os lumes. Entretanto chegou o pão e fez-se a transacção. Bateu os bifes e pôs as mesas. O dia continuou. Chegou o marido, para a cara de quem não olhou, e a Casa foi-se enchendo de gente que queria ser servida o mais rápido possível.
Benedita sentia as pernas a tremer, mas nada disse. Continuou como se de um dia normal se tratasse.


Pelas três e meia, o espaço estava de novo, vazio. Benedita pôs a loiça na máquina, e guardou pequenos restos de comida em tupperwares. Limpou a bancada. Depois de ter tudo arrumado e limpo, lembrou-se que quarta-feira (o dia seguinte), era de bifes de cebolada. É preciso deixar a cebola esturgida sobre os bifes, de um dia para outro, de contrário, não ganham sabor.


Foi buscar a faca e as cebolas. Lavou-as, tirou-lhes a casca, e começou a cortar rodelas finas, cada vez mais. Ao primeiro corte, Benedita sentiu aquele vapor nos olhos. Continuou a cortar e os olhos encheram-se de lágrimas. Depois, pousou a faca e as cebolas no tampo da mesa. Sentou-se no banco da cozinha. E chorou, como nunca tinha chorado.