domingo, outubro 12, 2008

o telefonema


Sessenta e três, seis três. Três anos de amor mais dois de vida em comum. Promessas de cortinados e cruzeiros. Tudo desaparecia à velocidade com que tirava as bolas da tômbola.

Catorze, um quatro. Felizmente desde há duas semanas ninguém fazia bingo. Não estava a suportar a felicidade alheia. Até o pequeno alvoroço que se gerava se alguém fazia linha, lhe apertava o estômago, e uma ira subterrânea que não sabia que existia, começava a pontapear a sua barriga.

Refugiara-se no pequeno ser que a esperava sempre feliz, em casa. Lady era sua companheira mais fiel, desde há sete anos. Estavam sempre lá, uma para a outra. Lady lambia-lhe a cara quando a sentia mais triste, e apoiava a pequena cabeça no colo de Fátima nas noites em que lhe adivinhava a noitada em frente à T.V. Fátima tratava-a como a um filho, num entendimento desinteressado, próprio dos grandes amigos.

Mas o trabalho tinha que continuar. Um trabalho cheio de contacto humano, e expectativas humanas. Entrava às 15h, dava-lhe tempo para fazer o almoço a Lady, de se vestir e maquilhar como deve ser, de arrumar a casa, e de beber a bica, no café lá em baixo, calmamente ao balcão. Antes de sair e de se despedir de Lady, ligava sempre a televisão, no volume mínimo, para a pequenina ter companhia durante o dia e a noite, até ao seu regresso.

Descobriu tudo num dia como os outros. Um dia normal em que ele saíra cedo e ela arrumava os restos do pequeno almoço, ainda de negligé roxa e transparente. O telefone tocara e ela pensou que era ele. Uma chamada do meio do trânsito, plena de saudades e recordações da noite anterior. Mas não era ela, era outra pessoa, uma mulher. E as coisas mudaram.

Nesse dia manteve a rotina habitual, com os telefonemas a meio da manhã, ao almoço e ao lanche. Chegou a casa à noite, como sempre. Lady recebeu-a com latidos carentes, como sempre. Ele chegou às 22.30, como sempre. Jantaram normalmente, ele elogiou a comida, ela agradeceu. Ela estava sem fome e Lady estava anormalmente irrequieta. No final do jantar, pelo pudim flan, ela disse: a tua mulher ligou, hoje de manhã. Ele disse: quem?, e ela atirou o jarro da água para o chão. E depois o prato dele, e depois ficou muito calma e disse: metes-me nojo. Ele não disse nada.

Ela foi ao quarto e trouxe tudo o que era dele. Dois anos de roupa e perfumes e lâminas de barbear. Amontoou tudo no hall de entrada. Foi à cozinha, pegou numa faca enorme e disse: sai. E ele saiu.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ah, desculpe, era engano.

míscaro disse...

:) !!!