terça-feira, janeiro 06, 2009

tinha fé

(à venda no e bay)
Miriam abandona a velha vida e entra no ano com sapatos novos. Para ela, a aquisição de bens está carregada de simbolismo, variável conforme o bem adquirido. Nos sapatos encontra a vitalidade, o renascer, a mudança de pele. Miriam segue estas convicções quase astrologicamente, e atribui aos objectos, significados e valores.


A última vez que comprara um par de sapatos, foi no culminar de umas série de acontecimentos que conduziu ao fim daquela relação forte e duradoira, em que tanto apostou. Um trabalho diário e hercúleo em que, para além aquisição de bens, foram sendo sedimentados os mais valiosos sentimentos e expectativas. A realidade porém, não se coíbe em revelar segredos e pouco se emociona com o que se passa na sua arena. Assim, aquilo que parecia a Miriam o cálice transbordante do amor, numa reviravolta da vida transformou-se em algo a que queria deitar fogo, ou destruir, por outros meios igualmente eficazes. E Miriam comprou uns sapatos. Uns sapatos verdes de veludo macio, com uma pequena fivela a semi circundar as primeiras falanges dos dedos. Nove centímetros de desprezo, que afunilavam até se tornarem insuportavelmente cortantes. Era da sua convicção que em cada passo que dava, os destroços que sentia dentro de si assumiam outra forma qualquer.

Este ano tinha sido um ano normal o que, para Miriam queria dizer que não aconteceram grandes desgraças; tinha trabalhado, tinha tido saúde, tinha conseguido não acumular muito as prestações, e até tinha renovado o guarda-roupa numa série de oportunidades ambulantes e outras. Podia em suma sentir-se satisfeita. Mas Miriam tinha o desassossego dos que procuram sempre, mesmo quando tudo parece já ter sido encontrado. E queria mais, queria mais coisas. Mas, talvez pela primeira vez, não tinha uma ideia concreta do queria. Não seria um marido, porque o tempo do romance e das velas aromáticas tinham perdido o seu encanto, não seria uma subida de escalão no seu departamento, porque estava bem naquele e ninguém a chateava (até se podia descalçar), e de resto, não encontrava mais nada que a pudesse fazer mais feliz.

Decidira então que a melhor resolução seria comprar uns sapatos. E este ano optara pelo roxo, queria algo roxo, ou “purple” como lera numa revista. E depois logo se via. Podia até ser, que finalmente se decidisse a mandar um sms para aquele número de telefone do programa de música da televisão.

Tinha fé que aqueles sapatos a haviam de levar longe.

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